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quinta-feira, 14 de fevereiro de 2008

Violando o Tabu

Como o título sugere, XXY aborda a história de uma adolescente hermafrodita e de seus conflitos identitários. O filme, na minha opinião, não tem a menor intenção de construir uma obra de denúncia social ou de defesa das minorias. Prefere um tratamento mínimo, cheio de metáforas e alusões. Por exemplo, nunca se fala em “hermafroditismo” ao longo do filme, mas faz-se referências: “eu tenho os dois”, diz Alex a Álvaro; enquanto as bonecas na sua prateleira têm pênis postiços feitos de cigarros. Deste modo, opta-se por não abordar o assunto de frente, o que se encaixa na ótica confusa da adolescente. Quando alguém menciona sexualidade perto de Alex, ela se levanta e vai embora, revoltada. Esse é o desfecho de mais de meia dúzia de cenas; de onde se conclui que ela não quer ouvir falar de escolhas sexuais nem cirurgias reparatórias, e o filme também não.
Não há uma cena sequer de toda a narrativa que não esteja relacionada à sexualidade, e as simbologias se multiplicam às centenas para garantir as alusões. O pai de Alex, por exemplo, é apresentado como biólogo numa cena única em que opera uma tartaruga que perdeu uma barbatana, em alusão clara à mutilação genital. A mãe de Alex é a mulher que investiga sobre cirurgiões especializados em reconstruções do sexo enquanto, na cozinha de casa, ela pica uma cenoura (mostrada em detalhe, num claro símbolo fálico) e corta acidentalmente o dedo (novamente a mutilação).
Todos os personagens são determinados em função dessa anomalia e de seu grau de proximidade com ela. Pode-se dizer que XXY é um filme sobre hermafroditismo, e não sobre uma hermafrodita. Não sabemos o que Alex pensa, quais seus gostos e desgostos, seus planos, suas atividades... sabemos unicamente de sua anatomia singular.
Constrói-se um número tão grande de metáforas e alusões de leveza que elas se tornam excessivas, pesadas, explícitas. Enquanto muitas imagens surpreendem pelo humanismo do tratamento, o conjunto parece opressivo. Isso mostra, acima de tudo, uma dificuldade enorme de se abordar um tabu, de pôr em imagens (necessariamente referenciais e carregadas de uma idéia de “verdade”) o que fere já em discurso. É difícil ser leve sobre um assunto tão grave; é difícil dar peso ao que julgamos que deveria ser tratado, enfim, como algo normal.
Analisando o termo: intersexualidade é uma palavra guarda-chuva, descreve uma grande variedade de situações em que os genitais de uma pessoa não correspondem aos estereótipos sociais, culturais e políticos atuais. Para a medicina ocidental, nós somos pessoas com genitália ambígua, indefinida, deformada ou patológica. De acordo com padrões médicos atuais de tratamento, as meninas nascidas com clitóris que são maiores que o estereótipo genital feminino são submetidas à normalização por “clitoridectomia”. Meninos cujo pênis é menor do que o estereótipo genital masculino é submetido à cirurgia, freqüentemente para “transformá-los” em meninas, porque seus corpos contradizem os estereótipos sobre a genitália masculina. E é aí que nos deparamos com que acredito ser a parte 'chave' do filme, quando o pai de Alex procura por um homem que fora mutilado quando criança.
Em geral, os intersexuais não são informados sobre as cirurgias executadas durante a infância adiantada, e/ou recebem informação enganosa sobre ela. Não têm, freqüentemente, o acesso a seus registros médicos: estes são escondidos ou destruídos. Estas cirurgias que visam a mutilação, transformam o corpo do intersexual para os padrões culturalmente aceitáveis, violando sua autonomia de decisão, da mesma maneira que a sua integridade corporal. Os intersexuais não têm nenhum acesso a consentimento informado antes das intervenções que se decidem não somente sobre o gênero legal, mas também sobre a forma de seus corpos e a sensibilidade de sua carne. O sigilo médico viola também o direito à identidade, à história pessoal e ao status como os tópicos ligados aos direitos humanos, protagonistas e não vítimas de sua própria história. A mutilação genital de crianças intersexuais danifica a sensibilidade genital de maneira irreversível; causa um trauma pós-operatório e a internalização de preconceitos brutais que negam ou que estigmatizam a diversidade que, em realidade, os corpos humanos mostram.
No "tratamento” médico atual para a intersexualidade, a discriminação baseada na identidade e expressão de gênero vai ao encontro da discriminação de expressão baseada na orientação sexual. Sexismo vai ao encontro da homofobia.
A diferença na genitália não pode justificar, sob nenhum pretexto, qualquer que seja, hierarquias éticas e políticas: não pode justificar a mutilação, porque nunca normaliza, mas faz o oposto. Em ICP temos nos confrontado diariamente com esse tipo de situação, em que atos de pura desumanidade são naturalizados de forma passiva, sem questionamentos. A questão principal, acho, que XXY levanta é: devemos pensar em gêneros ou em seres humanos?

Referências:

Moreno JL. Psicodrama. 2a ed. São Paulo: Cultrix; 1978.
Moreno JL. Psicodrama. 9a ed. São Paulo: Cultrix; 1993.
Moreno JL. Psicoterapia de grupo e psicodrama. São Paulo: Mestre Jou; 1974.
Costa RP. Os onze sexos: as múltiplas faces da sexualidade humana. São Paulo: Gente; 1994.
Merengué D. Sexualidades e espontaneidade criadora. Revista Brasileira de Psicodrama. 1999;7(2):65-74.
Fonseca J. Psicoterapia da relação: elementos de psicodrama contemporâneo. São Paulo: Ágora; 2000.
Fonseca J. Psicodrama da loucura. São Paulo: Ágora; 1980.


Autor: Willian Pereira do Nascimento – História, 2º Semestre.

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